sexta-feira, novembro 05, 2010

Carta Inacabada

Na postagem anterior – “Confissões” – descrevi alguns momentos que vivi na universidade.
Nesta postagem, o assunto formação profissional é retomado. Decidi expor uma carta escrita em um momento muito peculiar. Considero-a um desabafo...

Concluir a graduação significa que você está apto, pronto para o mercado de trabalho. Mas imagine que dias antes da formatura todos os seus passos eram supervisionados por um professor, a maioria das suas decisões eram discutidas e avaliadas por um grupo de profissionais experientes. De repente, depois de uma noite de lágrimas, despedidas, brindes e valsas, percebe que a camisa de estudante fica ridícula em você. Hora do primeiro trabalho!
Aos poucos começa a notar que seu conhecimento é mais limitado do que pensava. Liga para os colegas, revê disciplinas dos primeiros anos de faculdade, manda email para o antigo (que nem é tão antigo assim) professor...
Foi nesse contexto, que resolvi escrever uma carta... Poucos meses depois da formatura.
Segue:

Caros colegas,

Perdi noites de sono tentando transformar meus sentimentos em palavras. Desejo, fervorosamente, descrever a Psicologia. Não a Psicologia expressa por ementas ou grade curricular. É a Psicologia que sinto pulsar em minhas veias, construída a cada dia no encontro com alteridade.
Agradeço a Freud, a Rogers, a Skinner, Winnicott, Piaget e muitos outros teóricos que apontaram caminhos possíveis para a compreensão do ser humano, no entanto, minha gratidão maior são pelos PedroS, AlbertoS, MariaS... Anônimos que confrontam cotidianamente as teorias que, erroneamente, pensei que explicassem tudo.
É isso mesmo! Explicar tudo é impossível!
Entrei na universidade com um ponto de interrogação e saí dela com centenas deles, e não pensem que isso é ruim, pois não é! A dúvida é provocante e impulsiona na tarefa de saber sempre mais.
Por vezes, ouço um ou outro tentando acalmar minha inquietação: “Não se preocupe, você se acostumará.” Em silêncio respondo: “Não quero me acostumar! Acostumar com a dor, a angústia, a pobreza, a corrupção nos órgãos públicos?”
Acostumar-se é ficar satisfeito com respostas simples e prontas. É recusar-se a refletir sobre sua prática dentro do hospital, da escola, da organização, do CRAS, do CREAS... É inércia! E vamos combinar que psicólogo somado a inércia é igual à contraproducência. Psicólogo rima com mudança, reflexão, promoção da saúde...
Tenho pressa, tenho fome de saber!
Sinto raiva, esperança, cansaço, alegria, revolta, entusiasmo... Os mesmos sentimentos que coincidentemente estudei e ironicamente tenho dificuldade de administrar.
Assisto a miséria humana no seu estado mais real. Pessoas entregues ao vício... Dias sem comer, sem tomar banho... Já vi animais em condições melhores! Dói na alma ver seu semelhante em condições nada semelhantes a sua.
Tenho trazido trabalho em excesso para casa, pois não durmo. Sinto-me como Fernando Pessoa descreveu: “tenho em mim todos os sonhos do mundo!”. Com tantos sonhos assim deveria dar conta de escolher um para começar, mas não consigo.
Essa psicologia ninguém ensina. Trabalhar com a vulnerabilidade social tornou-se mais que um desafio. Precisamos, de fato, ser agentes de mudança.
Desejo que todos estejam bem! 

Danielle Faria.

Essa carta ficou guardada quase um ano. Depois decidi enviá-la para parte dos meus colegas.
Na época em que foi escrita, trabalhava na assistência social, um campo de trabalho novíssimo para a psicologia.
A carta foi o resultado da ansiedade diante desse campo de trabalho que ainda estava sendo construído - participei do 1º encontro nacional para debater sobre o Sistema Único da Assistência Social, daí se tem uma ideia quando refiro-me ao campo de trabalho novo.
Acredito que todos, independente da profissão que exerçam, precisam ser agentes de mudança.
Fica a reflexão!

2 comentários:

  1. Excelente texto, excelente oportunidade de chamar a atenção do leitor!!! Não se preocupe, vc não é a única que sente esses "medos" durante a caminhada...

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  2. Fantástico! São muitos medos que sentimos, muitos mesmo. Estou com tanto medo com relação a esse curso, que isso as vezes me desanima. Mas percebo que isso é natural em todos os campos profissionais e que é preciso enfrentá-los e tratar tudo isso de forma inovadora. Valeu por ter me enviado o link do texto Dani. Que Deus te abençõe muito.

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